domingo, 23 de agosto de 2009

Crónica Russa

DIA 1, 2 e 3 de Agosto. Rússia, São Petersburgo. O Hotel é simplesmente fantástico. Hotel Sokos Palace Bridge. Situa-se, por inacreditável que pareça, numa ilha. Para quem como eu, deixou Santa Maria durante as férias, seria de esperar outra inclinação na eleição dos locais de pernoita. Será coincidência? Desde Puttgarden, Alemanha, que temos dormido em ilhas ou a bordo de navios cruzeiros. Que vício..., que perfeição!
São Petersburgo é uma cidade gigantesca, colossal. É mesmo enorme. Mesmo! A zona mais central é constituída por várias ilhas interligadas por um sistema de pontes levadiças. Muitas pontes. O nosso Hotel fica na ilha Vasilyevskiy Ostrov, uma zona muito in.
Yuri Gorbachev, o russo de 31 anos, que no dia anterior nos auxiliara na fronteira, telefonou-nos pela manhã, disponibilizando-se a acompanhar-nos numa visita guiada à sua cidade. Afinal, vive ali desde sempre, e reside actualmente na mesma ilha onde fica o nosso Hotel. Seria concerteza uma boa opção. Assim foi. Ponto de encontro o Forte de Peter e Paul. Chegou com a esposa, Olga, e a filha Bárbara. Eles de carro, nós de mota. Mesmo assim não era fácil acompanhá-lo. O trânsito em São Petersburgo não é para amadores. A organização do tráfego rodoviário não obedeçe à lógica ocidental. Uma passagem baixa pelos principais pontos de maior interesse turístico, uma visita cirúrgica ao coração desta cidade carregada de história e com um simbolismo especial para o povo russo, e já estávamos a caminho dos arredores da metrópole, rumo a Peterhof, ou a casa de Peter, a cerca de 30 km de São Petersburgo. Assim que entrámos nas imediações do recinto, depressa nos apercebemos porque razão é mandatória a sua visita. Considero que as imagens falam por si, e porque uma imagem vale por mil palavras, não digo mais nada e deixo-vos algumas imagens. Aqui, até os corvos pareceram simpáticos, aos olhos da Carla...Não há nada como um enquadramento adequado.

Fomos almoçar já fora de horas, em Pavlovsk, no Restaurante Podvorye (Coach House), o melhor do género em São Petersburgo e arredores. Comida tipicamente Russa, uma autêntica maravilha. Tudo! A comida, a companhia, especialmente a companhia, o serviço, tudo... Afinal não é um restaurante qualquer. É o restaurante onde vem Vladímir Vladímirovitch Putin (Владимир Владимирович Путин, em cirílico), sempre que visita a sua cidade natal, São Petersburgo. Tem até um menu com o seu nome, em sua homenagem. Estão a ver, não estão? Absolutamente deslumbrante.

Entretanto, Yuri e Olga revelavam-se pessoas excepcionais. Especiais, difíceis de descrever. Uma agulha num palheiro... ou mesmo em muitos palheiros.
Outra vez na estrada, rumo ao nosso Hotel, para uma pausa antes do jantar. Para a noite estava planeado um passeio de barco pelos canais e rios magníficos que banham a cidade.
Trânsito intenso e desalinhado, pouco lógico, na zona de Pushkin. A exigir vigilância máxima. Acontece o insólito, o inesperado. CRASH!... Acidentalmente a GS do Nuno, que encabeçava o trio, embate na traseira do descapotável do Yuri. Apesar da pouca velocidade, foi aparatoso. Foi impossível evitar a queda, causando danos preocupantes na GS, sobretudo ao nível da suspensão dianteira. Subitamente, tudo estava em causa, até porque o próprio Nuno sofrera um pequeno golpe no sobrolho. Tinhamos de aguardar enquanto o nosso companheiro de viagem era observado numa ambulância, que depressa acudiu ao local do sinistro. Entretanto, iniciaram-se as diligências habituais nestas circusntâncias, mas à maneira russa. Foi sobretudo a partir deste momento que o inestimável apoio do Yuri surpreendeu todos. Incansável. Um apoio. Um amparo. A tantos km de casa, teve obviamente um significado especial. Inolvidável.


O Nuno prefere a versão do Alce. Este piloto destemido exibia progressivamente uma condução mais hábil e corajosa ludibriando as curvas e penedos arriscados que caracterizam os arredores de São Petersburgo. A vida selvagem, invulgarmente abundante, adensava os perigos desta região remota, quase inexplorada. Quando finalizava um salto entre duas ravinas, acontece o insólito. Uma manada descomunal de alces cruzava o trilho sinuoso, bloqueando uma transição segura para o desafio seguinte. Entre guinadas sucessivas e evasivas de última hora, o Nuno resplandecia, fazendo mesmo antever um final feliz deste encontro inopinado. Prognósticos que se confessaram prematuros pois, eis que, quando já sacudia o pó das sobrancelhas, se avista com o Macho-Alfa da manada. Aquele animal que teima sempre em ser o maior do grupo, engordando até acumular pelo menos 500 Kg de músculos e astes. Sem escapatória... CRASH!...

Claro que, o simples facto de nesta altura ser aceitável avançar com mais do que uma versão, leva-nos a advinhar um desfecho feliz. Assim foi. Após o inoportuno incidente as circunstâncias ideais ditaram um final feliz. Refiro-me, claro, ao Yuri que, desde logo, encetou um sem número de contactos que mais tarde resultariam no desbloqueio desta lamentável ocorrência. Entretanto o fim-de-tarde prolongar-se-ia até às 02:00. A longuíssima espera pelos meios de socorro despoletados pela assistência em viagem do seguro, proporcionou-nos observar um quase-sol-da-meia-noite. Na verdade, não fosse o Yuri a desbloquear todo o imbróglio, à maneira russa, e ainda lá estaríamos. Acabámos por transportar a GS, recorrendo a um transporte providenciado pelo nosso amigo russo, para um recinto privado de onde, mais tarde, haveria de sair a mesma GS pelos seus próprios meios, mas numa versão muita-fita-gomada. Entretanto, já o Nuno se encontrava no Hotel a descansar, depois de, numa versão Rambo Pires, ter desembrulhado a cabeça de dezenas de rolos de gaze e compressas. Ainda nessa noite, antes de nos deixar, o Yuri fez questão de ver o Nuno para se certificar de que tudo estava bem. Deitámo-nos com a garantia do Yuri de que tudo se resolveria. Os próximos dois dias seriam passados em São Petersburgo.

O dia seguinte, 2 de Agosto, começou mais tarde, dando oportunidade ao Nuno para recuperar, dentro da medida do possível, claro. Uma incómoda batatona na cabeça e um olhar sombrio acompanhariam o Nuno durante os próximos dias.
Depois do almoço no Hotel, em que o tema de conversa foi, obviamente, o número excessivo de alces nas redondezas da cidade, o João, a Carla e o Nuno sairam com a família Gorbachev para uma visita a mais alguns pontos de interesse da cidade. Nessa tarde beneficiei de algum tempo para actualizar o blogue, que já anunciava algum abandono, por falta de tempo. Fiquei no quarto. Lá fora, trovejava e chuvia ocasionalmente. De quando em vez fui fumar um cigarro à janela, que dava para as traseiras do hotel, a fazer lembrar os cenários do Call of Duty, jogo espectacular de computador inspirado na II Guerra Mundial. Recordo-me do som das gaivotas que ecoava bem alto naquelas amplas entrecasas, vazias. Enquanto isso, noutra área da cidade, a família Gorbachev presenteava os restantes elementos do grupo com um momento Zen. A determinada altura a Olga terá perguntado se alguém queria comer ou beber algo. Prontamente a Carla terá retorquido afirmativamente, pois o passeio a pé já acumulava algumas horas, e uma pausa para café ou chá era desejável. Sem se aperceberem descobriram-se no interior de um supermercado, sem saber muito bem porquê, nem para quê... Já cá fora, num recanto abrigado da chuva forte que batia, fizeram rodar a garrafa de conhaque Ararat de 20 anos. Dois ou três golos do requintado líquido para cada um, mas só depois de um bom-bom Ferrero Rocher. Um lanche-à-maneira-russa, ou a comemoração de uma nova amizade?


Falhámos o concerto da Madona que começava às 18:00 numa das muitas e desafogadas praças da cidade. Que chatice...
O jantar reuniu-nos a todos numa pizaria espectacularmente bem decorada, em harmonia com a qualidade das iguarias. Mais um momento de conhecimento mútuo, a enriquecer este relacionamento recente mas, seguramente, duradouro. Ainda antes de regressarmos ao conforto do hotel, tivémos tempo de assistir a mais uma ocorrência diária, mas sempre deslumbrante, nesta cidade. Pontualmente, todas as noites, à 01:00 todas as pontes se aprumam, num espectáculo memorável, deixando passar dezenas de navios que pacientemente aguardavam para se fazerem rio acima ou rio abaixo, em direcção ao Golfo da Finlândia. O percurso até ao hotel foi feito debaixo de uma chuva miudinha, por ruas pouco iluminadas e com pouca gente. Uma atmosfera a evocar o cenário de um qualquer thriller policial, em que o Nuno, com o seu olhar sombrio, era o mau-da-fita...

Na manhã seguinte, 3 de Agosto, último dia em São Petersburgo, a Carla foi às compras com a Olga. Sem dificuldades em se fazerem entender nestas coisas, alguma coisa as unia, tinham algo em comum... É um prazer que não conhece fronteiras políticas, culturas ou religiões. As mulheres e as compras... as compras e os cartões de crédito... Chegou com um Ovo Fabergé... e um saco cheio de compras.
Na verdade, tinha ficado acertado para esse dia, pela hora do almoço, um contacto do Yuri com o veredicto final. Temos GS ou não? Estaremos resumidos a 2 GS´s? O atraso acumulado na Rússia comprometeria o resto da aventura? Perguntas inquietantes, que nos desassossegavam mais e mais, quanto mais perto estávamos de ter notícias do nosso amigo. Trim-trim, trim-trim... era o Yuri. Agora é que é... “a mota vai ficar OK, ainda hoje, mas tarde. Talvez só mesmo durante a madrugada, mas amanhã podem ir embora...”. Arrepiei-me!... Estávamos de novo na estrada. As três GS´s! Uau...que loucura. Estávamos na Rússia, onde tudo se faz à maneira russa, sem papeis, sem burocracias e sem delongas. Com os conhecimentos certos e dinheiro tudo se resolve.
Ficou combinado um último jantar num restaurante japonês, próximo do nosso hotel, altura em que saberíamos mais detalhes e informações sobre os progressos. Durante o resto do dia, ainda incrédulos, deambulámos pela cidade, por ruas e praças, por lojas e galerias. É de facto uma cidade fantástica. Para voltar! O regresso ao hotel, ponto de encontro para o jantar, foi feito de taxi. Quinhentos rublos, negociados.

A comida japonesa era deliciosa. A melhor e mais saborosa que provei até hoje. O enquadramento também era o ideal, uma mesa cheia de amigos. A alguns dos quais ficariamos a dever muito, pela sua ajuda e suporte. Ainda durante o jantar o Yuri recebeu um telefonema do Max, o seu mecânico, o homem-das-mãos-de-ouro. Estava pronta a montada do Nuno. Arrancámos para o tal recinto privado onde a tinhamos largado à quase dois dias atrás. Para quem tinha visto a GS no local do acidente, parecia inacreditável. Só a labuta dedicada de um mestre e o trabalho afincado de um perito podia permitir tal recuperação. As bainhas tinham sido reconstruídas, reforçadas e alinhadas. Depois de um pequeno ensaio para testar a restituição das características originais chegou o momento da fita-gomada, da prodigiosa fita-americana. O conjunto ficou catita... Antes de nos despedirmos do Max e dos seus assistentes, o homem-das-mãos-de-ouro obrigou o Nuno a prometer que assim que chegasse a Lisboa mandaria arranjar a sua GS numa oficina competente. Promessa feita. Depois do pagamento, rumámos ao hotel, ali bem perto, para nos prepararmos para a viagem que recomeçaria na manhã seguinte. O Yuri insistiu em acompanhar-nos até aos limites da cidade no dia seguinte. A noite, essa noite, foi especial. Era véspera do recomeço da aventura, que em determinado momento, admitimos ter terminado...

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