quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A Subtracção


DIA 4 de Agosto. São Petersburgo – Estónia (Parnu). Na manhã do 11º dia de aventura, os preparativos finais que antecederam mais uma jornada tiveram um sabor particular. Afinal, a nossa odisseia e a GS do Nuno renasciam das cinzas, como a Fénix ou o Pássaro de Fogo do folclore russo (жар-птица, zhar-ptitsa). Mas os sentimentos eram marcadamente antagónicos. Se por um lado o até à próxima! a São Petersburgo cunhava o triunfo sobre a adversidade (afinal a viagem continuava...), por outro lado alguma tristeza e pesar se abatiam sobre nós. Deixávamos para trás um Amigo, Yuri Gorbachev, e uma cidade extraordinária onde vivemos experiências únicas. C´est la vie...
Quando saímos da garagem do hotel, já o Yuri nos aguardava cá fora para nos orientar até à saída da cidade. Mais uma vez, constatámos a grandiosidade da Terra de Peter, agigantada, monumental...
Hora do adeus, na berma da estrada que nos conduziria em direcção da Estónia. Num gesto elegante e natural, Yuri despede-se de nós com um abraço e dois beijos. Mais um momento, o último, a assinalar a nossa passagem por estas bandas. Ósculos e amplexos para trás e estávamos a rolar, outra vez. E que bem que soube...

Não foi necessário percorrer muitos km para o fascínio e o deslumbramento serem aniquilados. Depressa nos apercebemos de outra realidade bem diferente da que tínhamos conhecido nos últimos dias. As estradas em estado deplorável, quase indecente, depressa se transformaram numa espécie de desafio à paciência e à vigilância. A atenção era dividida entre os perigos da via, o tráfego desregrado e eventuais patrulhas policiais, para as quais tínhamos sido alertados. As bermas da estrada, aqui e ali, estavam ornamentadas com muitos vendedores-de-berma-de-estrada.
Entretanto, era possível observar as peculiaridades das pequenas localidades ou dos muitos e diminutos aglomerados de casas. As habitações são maioritariamente construídas em madeira com telhados de chapa, a fazer lembrar os bairros-da-lata. Casas pequenas, atarracadas e desordenadas. Do que viverão estas pessoas? Ali no meio do nada, em nenhures... E no Inverno, como subsistirão? Senti-me recuar no tempo... O nosso dia-a-dia remete-nos para uma verdade demasiado circunscrita, limitada e cega. Os noticiários e documentários são insuficientes... Atravessámos uma região da Rússia muito pobre. Muito!...

De quando em vez, vislumbrávamos umas obras de repavimentação, a obedecerem a preceitos e regras invulgares, ao olhar mais ocidental. Por exemplo, a sinalização é do mais desconforme e enigmática que possam imaginar. Por vezes, a abundância exagerada de indicações implicava alguma serenidade para digerir e assimilar toda a informação. Num pequeno fragmento de via a ser repavimentado era vulgar contabilizar algumas dezenas de sinais e indicações. Quase parecia uma ratoeira, uma armadilha para os mais incautos.

Bom... lá iam as três GS´s por ali-a-fora, quando... ao olhar para a esquerda para me acautelar com a viatura que me ultrapassava, eis que... era um Lada. Um Lada talvez de 1975, 76.... Um Lada, que afinal era um carro da policia com dois agentes da autoridade no seu interior. Um deles acenava repetida e impacientemente um pequeno bastão a dar-me indicação para encostar na berma. Já está!... Já es-tá!... Tá mesmo...
Vieram-me à memória todas as histórias que tinha ouvido acerca destas personagens, destes Senhores Agentes que nos mandam encostar e nos subtraem uns rublos. Surpreendentemente, o coração não disparou. Mantive-me tranquilo e até com alguma curiosidade. Como é que é isto afinal? Qual é o processo? Há método?... É contraditório, mas de alguma forma até estava entusiasmado com a situação. Estava a iniciar-se mais uma lição, uma experiência daquelas... ao vivo e a cores! Vamos lá então...

Motas no descanso lateral. Os Senhores Agentes aproximaram-se e não perderam tempo. Num russo im-pe-cá-vel, declararam que éramos os três uns gandas malucos. A Carla ficou fora do baralho. Incrédulos, e ainda mal reestabelecidos da perturbante resposta, também em russo, à pergunta Do you speak English?, os Senhores Agentes depressa se precipitaram sobre uma prancheta que agarrava uma folha A4 em branco. Em branco, mas por pouco tempo, pois os riscos e rabiscos eram demasiados. Tantos quanto as infracções, transgressões, violações, desobediências, delitos, desrespeitos e pecados cometidos. Mais tarde, fiquei com pena de não ter tido o discernimento de tentar ficar com aquela obra artística. Aquela peça-de-autor aparentava poder atingir um preço elevado. Afinal, os artífices pareciam empenhados na sua estrutura e configuração, talvez impelidos pelo mercado em alta das obras-de-arte...
Abruptamente, entre os nossos desacordos expressos em inglês e também em português, surge a primeira palavra inglesa proferida por um Senhor Agente. Write!!... enquanto estendia a prancheta ao Nuno. Boquiaberto, eu nem queria acreditar. Seria para acrescentar algum rabisco ao conjunto, num impulso grupal? Ou, quiçá, para lhe atribuir a cotação de mercado? Demasiado declarado e indecoroso, pensei. Mas era. Era mesmo... Queriam a cotação. Qual seria, na nossa opinião, o valor adequado para remeter ao esquecimento as nossas travessuras e diabruras. Para melhor se fazerem entender e para não haver mal-entendidos esbracejaram, batendo com as palmas das mãos na barriga, que era grande, enquanto proferiam a palavra altérnátiva (com uma pronúncia francesa e um-não-sei-quê de inglesa), que é como quem diz...
A medo, o Nuno lá avançou... Escreveu 50. Num reflexo Pavloviano, os Senhores Agentes vociferaram uma gargalhada, que se propagou a uma distância considerável. A Carla que se mantinha imóvel a cerca de vinte metros da tertúlia sentiu-se na Casa da Música, tal foi o timbre e a acústica. “(...) Em euros... 50 euros...(...)” insistiu o Nuno. Mais uma gargalhada desta vez acompanhada de gestos que denunciavam estarmos muito aquém do valor apropriado... Bem, depois foi um sem fim de números rabiscados, 100, 150... até a folha A4, antes branca, ficar azul escura, da cor da caneta da lei. As faltas e incumprimentos cometidos por esta altura já não tinham significado central. Tratava-se de um negócio, e aqueles malandr..., perdão, Senhores Agentes sabiam-na toda. Tínhamos de pagar para ir... E eles queriam mais, muito mais. Queriam tudo... A determinada altura, numa derradeira tentativa de coacção, os Senhores Agentes atiraram os passaportes para cima do tablier do Lada e sentaram-se, como quem diz sem isto não vão a lado nenhum, e esperaram. Esperaram... Quase amuados. Num impulso, tive a ideia de fazer valer a adversidade a que tínhamos sido sujeitos em São Petersburgo. A GS acidentada versão-muita-fita-gomada e o olhar sombrio do Nuno eram perfeitos. Resultou! Os Senhores Agentes aceitaram descer a parada. Afinal éramos uns desgraçados que só queriam ir para casa. Além do mais devíamos estar tesos com tanta despesa, como apregoávamos há muito tempo. Assim foi. Reunimos 120 €, que era todo o dinheiro que dizíamos ter na nossa posse e..., deixaram-nos ir. Não sem antes, já dentro do Lada e depois de terem invertido a marcha nos dizerem, num russo im-pe-cá-vel, “(...) имеют смысл и ухода с полицией!”. Era o fim do instante turístico. Agradecemos. Até à vista! Desejei-lhes uma praia cheia de gente no Allgarve. A rolar, outra vez. E que bem que soube...

Até à fronteira não houve grandes alterações relativamente às estradas e à paisagem. O panorama só se alteraria depois da fronteira e só depois das muitas formalidades legais para sair deste país. Quase tantas como para entrar. Mas gostei de lá estar...
A cidade fronteiriça do lado da Estónia, o primeiro dos três países bálticos visitados da Europa Setentrional, revela algumas diferenças, ao início subtis, comparativamente à Rússia. Enfim, estamos a falar da cidade de Narva, a terceira mais importante da República da Estónia. Diferenças que aumentam progressivamente até se tornarem desigualdades radicais, à medida que avançamos para o interior deste país, futuro membro da UE. Para melhor! As estradas, a paisagem, a organização urbanística, o nível de vida e, de uma forma geral, tudo. Mesmo tudo. Apesar, claro, de as comparações nesta altura ainda serem feitas em relação à Rússia.

Chegámos a Tallinn, capital da Estónia, a meio da tarde. Cidade costeira, principal porto mercante do país, a apenas 80 km a sul de Helsínquia, do outro lado do Golfo da Finlândia. Cidade plana e relativamente pequena, com apenas cerca de 400.000 habitantes. Dirigimos-nos ao Centro Histórico de Tallinn, Património Mundial da UNESCO, onde encontrámos um compatriota que nos desejou boa-sorte. A arquitectura russa é reinante, herança dos tempos de domínio russo e de ex-república soviética. Denuncia uma vida cultural agitada, com anúncios a todo o tipo de festividades e eventos, quer sejam musicais, teatro, lúdicos...Muito bonito! Um centro cheio de esplanadas e de loiras. Muitas loiras. Só que não são Sagres nem Super Bock. A Carla não apreciou muito aquela frescura toda. E até estava calor... até estava...
Bom... depois da pausa, continuámos para Parnu, cidade muito popular para as férias de verão dos estonianos, onde estava planeado pernoitarmos.

Depois de instalados fomos jantar a um restaurante muito simpático, construído em madeira, bem perto do nosso hotel. Foi uma oportunidade para fazer um balanço da nossa aventura e considerar as circunstâncias. Estávamos em condições de manter os planos originais? Mantínhamos Istambul? Refazíamos o programa? Não foi fácil decidir, até porque não estava apenas em causa o tempo ainda disponível. A GS do Nuno estava 100% operacional? Na verdade, as preocupações do João nesta área eram fundamentadas. Como elemento mais experiente do grupo e conhecedor profundo das vísceras das motas, era importante considerar os seus pontos de vista. Deliberámos continuar!... Estávamos determinados e confiantes que era possível cumprir o planeado. No planeamento inicial tinham sido incluídos alguns dias extra para descansar ou para progredir menos km por dia. Vieram a calhar os extras... No dia seguinte atravessaríamos a Letónia e a Lituânia. O plano seria dormir em Minsk, capital da Bielorrússia.

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