Quando saímos da garagem do hotel, já o Yuri nos aguardava cá fora para nos orientar até à saída da cidade. Mais uma vez, constatámos a grandiosidade da Terra de Peter, agigantada, monumental...
Hora do adeus, na berma da estrada que nos conduziria em direcção da Estónia. Num gesto elegante e natural, Yuri despede-se de nós com um abraço e dois beijos. Mais um momento, o último, a assinalar a nossa passagem por estas bandas. Ósculos e amplexos para trás e estávamos a rolar, outra vez. E que bem que soube...
Não foi necessário percorrer muitos km para o fascínio e o deslumbramento serem aniquilados. Depressa nos apercebemos de outra realidade bem diferente da que tínhamos conhecido nos últimos dias. As estradas em estado deplorável, quase indecente, depressa se transformaram numa espécie de desafio à paciência e à vigilância. A atenção era dividida entre os perigos da via, o tráfego desregrado e eventuais patrulhas policiais, para as quais tínhamos sido alertados. As bermas da estrada, aqui e ali, estavam ornamentadas com muitos vendedores-de-berma-de-estrada.
Entretanto, era possível observar as peculiaridades das pequenas localidades ou dos muitos e diminutos aglomerados de casas. As habitações são maioritariamente construídas em madeira com telhados de chapa, a fazer lembrar os bairros-da-lata. Casas pequenas, atarracadas e desordenadas. Do que viverão estas pessoas? Ali no meio do nada, em nenhures... E no Inverno, como subsistirão? Senti-me recuar no tempo... O nosso dia-a-dia remete-nos para uma verdade demasiado circunscrita, limitada e cega. Os noticiários e documentários são insuficientes... Atravessámos uma região da Rússia muito pobre. Muito!...
De quando em vez, vislumbrávamos umas obras de repavimentação, a obedecerem a preceitos e regras invulgares, ao olhar mais ocidental. Por exemplo, a sinalização é do mais desconforme e enigmática que possam imaginar. Por vezes, a abundância exagerada de indicações implicava alguma serenidade para digerir e assimilar toda a informação. Num pequeno fragmento de via a ser repavimentado era vulgar contabilizar algumas dezenas de sinais e indicações. Quase parecia uma ratoeira, uma armadilha para os mais incautos.
Bom... lá iam as três GS´s por ali-a-fora, quando... ao olhar para a esquerda para me acautelar com a viatura que me ultrapassava, eis que... era um Lada. Um Lada talvez de 1975, 76.... Um Lada, que afinal era um carro da policia com dois agentes da autoridade no seu interior. Um deles acenava repetida e impacientemente um pequeno bastão a dar-me indicação para encostar na berma. Já está!... Já es-tá!... Tá mesmo...
Vieram-me à memória todas as histórias que tinha ouvido acerca destas personagens, destes Senhores Agentes que nos mandam encostar e nos subtraem uns rublos. Surpreendentemente, o coração não disparou. Mantive-me tranquilo e até com alguma curiosidade. Como é que é isto afinal? Qual é o processo? Há método?... É contraditório, mas de alguma forma até estava entusiasmado com a situação. Estava a iniciar-se mais uma lição, uma experiência daquelas... ao vivo e a cores! Vamos lá então...
Abruptamente, entre os nossos desacordos expressos em inglês e também em português, surge a primeira palavra inglesa proferida por um Senhor Agente. Write!!... enquanto estendia a prancheta ao Nuno. Boquiaberto, eu nem queria acreditar. Seria para acrescentar algum rabisco ao conjunto, num impulso grupal? Ou, quiçá, para lhe atribuir a cotação de mercado? Demasiado declarado e indecoroso, pensei. Mas era. Era mesmo... Queriam a cotação. Qual seria, na nossa opinião, o valor adequado para remeter ao esquecimento as nossas travessuras e diabruras. Para melhor se fazerem entender e para não haver mal-entendidos esbracejaram, batendo com as palmas das mãos na barriga, que era grande, enquanto proferiam a palavra altérnátiva (com uma pronúncia francesa e um-não-sei-quê de inglesa), que é como quem diz...
A medo, o Nuno lá avançou... Escreveu 50. Num reflexo Pavloviano, os Senhores Agentes vociferaram uma gargalhada, que se propagou a uma distância considerável. A Carla que se mantinha imóvel a cerca de vinte metros da tertúlia sentiu-se na Casa da Música, tal foi o timbre e a acústica. “(...) Em euros... 50 euros...(...)” insistiu o Nuno. Mais uma gargalhada desta vez acompanhada de gestos que denunciavam estarmos muito aquém do valor apropriado... Bem, depois foi um sem fim de números rabiscados, 100, 150... até a folha A4, antes branca, ficar azul escura, da cor da caneta da lei. As faltas e incumprimentos cometidos por esta altura já não tinham significado central. Tratava-se de um negócio, e aqueles malandr..., perdão, Senhores Agentes sabiam-na toda. Tínhamos de pagar para ir... E eles queriam mais, muito mais. Queriam tudo... A determinada altura, numa derradeira tentativa de coacção, os Senhores Agentes atiraram os passaportes para cima do tablier do Lada e sentaram-se, como quem diz sem isto não vão a lado nenhum, e esperaram. Esperaram... Quase amuados. Num impulso, tive a ideia de fazer valer a adversidade a que tínhamos sido sujeitos em São Petersburgo. A GS acidentada versão-muita-fita-gomada e o olhar sombrio do Nuno eram perfeitos. Resultou! Os Senhores Agentes aceitaram descer a parada. Afinal éramos uns desgraçados que só queriam ir para casa. Além do mais devíamos estar tesos com tanta despesa, como apregoávamos há muito tempo. Assim foi. Reunimos 120 €, que era todo o dinheiro que dizíamos ter na nossa posse e..., deixaram-nos ir. Não sem antes, já dentro do Lada e depois de terem invertido a marcha nos dizerem, num russo im-pe-cá-vel, “(...) имеют смысл и ухода с полицией!”. Era o fim do instante turístico. Agradecemos. Até à vista! Desejei-lhes uma praia cheia de gente no Allgarve. A rolar, outra vez. E que bem que soube...
A cidade fronteiriça do lado da Estónia, o primeiro dos três países bálticos visitados da Europa Setentrional, revela algumas diferenças, ao início subtis, comparativamente à Rússia. Enfim, estamos a falar da cidade de Narva, a terceira mais importante da República da Estónia. Diferenças que aumentam progressivamente até se tornarem desigualdades radicais, à medida que avançamos para o interior deste país, futuro membro da UE. Para melhor! As estradas, a paisagem, a organização urbanística, o nível de vida e, de uma forma geral, tudo. Mesmo tudo. Apesar, claro, de as comparações nesta altura ainda serem feitas em relação à Rússia.
Chegámos a Tallinn, capital da Estónia, a meio da tarde. Cidade costeira, principal porto mercante do país, a apenas 80 km a sul de Helsínquia, do outro lado do Golfo da Finlândia. Cidade plana e relativamente pequena, com apenas cerca de 400.000 habitantes. Dirigimos-nos ao Centro Histórico de Tallinn, Património Mundial da UNESCO, onde encontrámos um compatriota que nos desejou boa-sorte. A arquitectura russa é reinante, herança dos tempos de domínio russo e de ex-república soviética. Denuncia uma vida cultural agitada, com anúncios a todo o tipo de festividades e eventos, quer sejam musicais, teatro, lúdicos...Muito bonito! Um centro cheio de esplanadas e de loiras. Muitas loiras. Só que não são Sagres nem Super Bock. A Carla não apreciou muito aquela frescura toda. E até estava calor... até estava...
Bom... depois da pausa, continuámos para Parnu, cidade muito popular para as férias de verão dos estonianos, onde estava planeado pernoitarmos.





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